Ritual religioso marca identidade comunitária

Povoado sertanejo, em Quixadá, preserva tradição familiar cultuando jornada religiosa de São Gonçalo

Quixadá Despertar com o galo da madrugada, limpar o terreiro, aprontar a latada, engomar a roupa e distribuir as faixas. Hoje tem festa o dia inteiro, com oferendas a São Gonçalo, o santo violeiro. São 12 jornadas no compasso do tambor e da viola. Tem pagador de promessa bancando a festa por graça alcançada. Mais de meio século se passou e Joaquim Ferreira da Silva, o Joaquim Roseno, continua puxando o ritual, mistura de religiosidade e folguedo popular.

Dessa feita, a festa foi encomenda pelo irmão mais velho, Antônio Ferreira da Silva, 83 anos. Havia motivo dos bons. O típico povoado rural recebeu reconhecimento importante, e quem sabe os loteiros do Sítio Veiga, lugarejo situado a 3km da Vila de Dom Maurício, na Serra do Estevão, zona rural de Quixadá, enfim tenham terras próprias. Além de sonho, milagre dos grandes para quem aprendeu a extrair do chão o sustento da vida. E com o santo nos braços, diante do par de fileiras, assiste pacientemente as jornadas até o anoitecer.

"São Gonçalo é um santo, muito milagroso. É de Deus amado e de todo o povo. Quem a São Gonçalo serve, será servido. É de Deus amado. É de todo o povo", começa a cantoria. O tambor e a viola marcam a coreografia, do amanhecer do dia até a hora do almoço. Aos poucos os dois partidos, o rosado e o anil, se misturam nos passos. Arrastando os pés descalços, as mulheres levantam poeira. A ladainha segue numa quase infinidade de cantos, até o momento dos cumprimentos, no encerramento da festa. O pagador da promessa agradece ao mestre da cerimônia.

De vida dedicada à roça, ele confessa não ser religioso fervoroso, mas aprendeu com os pais a respeitar os santos e preservar os costumes populares de sua comunidade. Nascido e criado na Serra do Estevão, não se interessou muito pelos estudos.

Ele lembra os motivos do ritual dançante. O santo gostava de festa e, como todo servo de Deus, dedicava-se a ajudar aos outros. Nas suas andanças de peregrinação recebeu pedido de proteção para as moças de um lugar, para não se perderem na vida, não caírem em tentação. Como solução, inventava festa à toa e passava a tocar a viola, até matá-las de cansaço. Exaustas de tanta dança, acabavam dormindo. Nessa história acabou surgindo milagre por todos os cantos e São Gonçalo se tornou muito respeitado. Ainda hoje ele repete o mesmo rito.

Mas essa manifestação popular corre o risco de transformação radical. De costume, as duas fileiras de dançadeiras, com seis delas em cada uma, são encabeçadas por dois homens. De uns tempos para cá, Rosimeire, a filha caçula de Joaquim, é quem assume esse papel. Ele justifica não haver interesse dos parentes, dos vizinhos e dos filhos no ritual. A maioria não tem disposição ou tem vergonha mesmo. Confia nas filhas a preservação desse costume herdado na família há gerações. Além de Rosimeire, Teresa e Rita Maria, as netas Geisene e Geiseane. Em reconhecimento ao esforço, uma das líderes comunitárias do Sítio Veiga, Ana Maria Eugênia, encaminhou solicitação à Secretaria de Cultura do Estado (Secult), para diplomação dele como Mestre da Cultura.

Quem preferir, pode apreciar "O Joaquim", da cineasta carioca Marcia Paraíso. O documentário aborda a folclórica dança do Sítio Veiga. Está disponível na Fundação Cultural Rachel de Queiroz, em Quixadá.

SÍTIO VEIGA
Moradores comemoram conquista

Remanescentes de quilombolas celebram o Dia da Consciência Negra e o reconhecimento do Ministério da Cultura

Quixadá Obatalá, Oxalá, Xangô, Exu, Oxum, Iemanjá, Odé, Omolum, Ibejim, Ogum. O negro canta, quebra as correntes da opressão. É Mariama, é Benedita, renovação. Após dois anos de luta na comunidade do Sítio Veiga, povoado na Serra do Estevão, zona rural de Quixadá, ecoa o refrão de liberdade numa festa especial. Comemoram com roda de capoeira e danças afro e religiosas, o reconhecimento oficial como remanescentes quilombolas.

No chão de barro batido do terreiro enfeitado com fitas coloridas e sol a pique, receberam a visita de professores, estudantes, universitários e pesquisadores. Os convidados assistiam atentos à primeira apresentação cultural da identidade étnica das 50 famílias arrendatárias do Sítio Flores. Pelas pesquisas da remanescente Ana Eugênia, o local tem suas raízes em Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Baseada nos relatos de moradores da vila ao lado, Dom Maurício, distrito encravado no cume da Serra do Estevão, ela soube ter sido "Estevão" o primeiro morador. Quem relatava tal fato era o capelão do Mosteiro Santa Cruz, hoje Pousada São José. A história ganhou força com um hábito dos mais velhos: orifícios nas paredes dos fundos das casas.

Com o auxílio de professores da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (Feclesc), Ana descobriu a razão do costume. Os pequenos buracos eram feitos nas moradas nos quilombos. Deles era possível avistar a chegada dos capitães do mato e fugir. Ela encaminhou os vestígios para a Fundação Cultural Palmares.

A resposta veio com a visita do chefe da Divisão de Ordenamento Fundiário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Flávio de Sousa. Ele representou a Fundação na entrega do Certificado de Autodefinição da mais recente comunidade afro-brasileira remanescente de quilombo do Ceará. Segundo ele, o certificado é importante para a regularização fundiária das famílias quilombolas. No Ceará, 21 processos estão em andamento. Agora, uma equipe multidisciplinar - geógrafo, cartógrafo, agrônomo e antropólogo - realizará os levantamentos técnicos. Concluídas as pesquisas, haverá publicação no Diário Oficial. Em seguida será aberto um prazo de 90 dias para contestações.




Jornal Diário do Nordeste

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