Quixadaense de Califórnia - Uma vida pelo violão


Dedicado há mais de cinco décadas ao reparo e à fabricação de instrumentos de cordas, Marcelo José de Lima fez de sua oficina, no Centro de Fortaleza, uma referência para os amantes do violão na capital cearense

início dos anos 50, uma notícia teria corrido por localidades do sertão central cearense. Havia quem desse conta de um menino com talento para trabalhos com madeira, incluindo um gosto especial por violões e violas. Não demorou até que a novidade chegasse aos ouvidos de um cantador, cuja viola calara pedindo reparos. O artista do improviso entregou o instrumento aos cuidados do jovem artesão, que se cercou das ferramentas de propriedade do pai, marceneiro, para devolver à viola o som devido: alto, brilhante, vivo. Assim como se sentiu aquele menino, cujas mãos passariam a vida a percorrer escalas de jacarandá, mogno, pinho, a serviço de sua majestade, o violão.

O instrumento das cordas de aço, do minúsculo braço, cantado pelo poeta Cartola, guiou os caminhos daquela criança pela vida. Do distrito de Califórnia, proximidades de Quixadá, para Sobral e, depois, Fortaleza. Do orgulho da primeira viola endireitada às centenas de violões que se acumulam, em pausas que não cabem na partitura, à espera de que os donos decidam buscá-los, na oficina encravada em uma veia movimentada do Centro da Capital.

Vencendo a distância entre um e outro momento, os olhos claros e tímidos, a fala simples e o gosto pela prosa sobre a atividade que se tornou, além de ganha-pão, motivo de reconhecimento e plenitude. “Eu faço isso há tanto tempo, e gosto tanto do que eu faço, que eu não tenho pressa de ir pra casa. Os outros, quando dá cinco horas, querem logo ir embora. Eu fico aqui, sem problema. Ainda levo coisa pra resolver em casa, quando complica. Trabalho à noite, trabalho fim de semana... Sou assim e sou feliz. Não tenho inveja de cabra rico, nem de cabra novo, nem de cabra bonito... Eu sou o que sou. Faço o que eu gosto e o que eu sei fazer”.

Palavras de Marcelo José de Lima, 67 anos, que corre os dedos pelas cordas do violão, em um rasqueado característico da escola antiga, bordões pronunciados costurando acordes simples, em uma seqüência que ele costuma utilizar ao testar e afinar os violões recém-reparados na Jorama, oficina de consertos – com “s”, ressaltariam os mestres - de violões. No calor da Liberato Barroso, do balcão pra fora a única filha, Márcia Regina, empresta um sorriso ao receber os clientes e cumpre os passos de um procedimento repetido, não raro, dezenas de vezes ao dia. Ouve os testemunhos dos proprietários sobre os feitos e malfeitos dos violões. Numera e etiqueta os instrumentos, já apontando quais problemas carecem de correção, assim como quais serão as técnicas necessárias para que tudo volte a soar bem.

Do balcão pra dentro, a sala de teto rebaixado, no primeiro piso, e o sótão improvisado se revelam um autêntico cais para centenas de instrumentos. Todos ali levados por seus proprietários; muitos esquecidos por parte dos mesmos, na pressa dos dias, no aperreio do bolso, no parênteses do esquecimento.

“Eu nem sei quantos violões tem aqui. Não contei, mas deve ter uns 500”, arrisca seu Marcelo, em meio à aglomeração de instrumentos cujos bojos se tocam, no espaço apertado, com os braços respirando mais espaçados no alto, até as mãos exibirem suas tarraxas – aqueles pequenos botões que se giram, em busca da devida afinação das seis cordas. E que, usualmente, são feitas de madrepérola, material distante do alcance daquele menino do sertão.

“Eu pegava um pedaço de tábua qualquer, partia no meio, fazia um formato de um violão, fazia o braço... Botava quatro pregos em cima, quatro na parte de baixo. Pras cordas, nem arame tinha. Fazia de rabo de cavalo”, lembra seu José. “Outra vez encontrei aquelas embalagens de bananada. Com aquela madeira fininha, fiz um violãozinho acústico, arrumei uns arames lá pras cordas, e fiquei animado. Afinava as quatro cordazinhas e dava o tom daquela música “Kalu”. Era só quatro cordas, só dava isso mesmo, mas já tocava. Tinha uns 10 anos”, revive.

“De outra vez, achei uma madeira grandona, melhor. Serrei e fiz um violão grande. E o bicho tocou, deu positivo, logo o primeiro que eu fiz. Aí espalhou a notícia que eu tinha feito um violão, e veio um cantador atrás de mim, pra consertar a viola. Pra mim, foi o mesmo que ganhar um prêmio na loteria”, sorri seu Marcelo. “Peguei essa viola, consertei pro Zé Bernardo, cantador. Ele até hoje é vivo, se precisar testemunha. Com aquela viola ali, eu tirei os modelos tudim. Mas o engraçado é que antes mesmo, sem eu nem nunca ter visto a viola, aquilo ali já tava tudo na minha cabeça. Quando fui ver, era exatamente do mesmo jeito que eu pensava”, impressiona-se.

Fonte:www.quixadaenoticias.blogspot.com

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